sábado, 16 de janeiro de 2010

O conflito

O Conflito

-E então diz-me ele ‘Ah olha, agora vou lutar contra a fome porque vou comer uma sandes!’ – Replica o do nariz adunco. Sim, o do nariz adunco tinha uma grande propensão para o descanso. ‘Não é defeito, é feitio!’ dizia quando o apelidavam de preguiçoso.
-Epá mas isso é parvo! – Contrapõe o da boca torta. E o da boca torta também, tal como o do nariz adunco, tinha especial preferência por cerveja. Quando chegava a casa e a mulher o via com as nódoas de cerveja na camisa, esta ia logo fazer abdominais, e que senhores abdominais!
-E sabe o que é que ele me diz a seguir? – Riposta o do queixo cosido, que era também o do nariz adunco – ‘Então e qual é coisa qual é ela que é mais engraçada que um bebé morto?’ e eu como é lógico disse-lhe ‘Queria era uma prato de tremoços…’.
-Claro! – Objecta o da perna falsa devido a um tiro de espingarda aquando da guerra civil de Santa Iria da Azóia, que era por acaso a mesma pessoa que o da boca torta. – E então depois?
-Depois… depois nem vossemecê imagina! Responde-me ele ‘Também já vinha a calhar.’ E MAIS! ‘Mais giro que um bebé morto… é um bebé morto vestido de palhaço!’ E desata-me ali a rir a bandeiras despregadas por causa de uma remarcação cómica que foi completamente desadequada dado o contexto do prato de tremoços! – Concluiu o que estava sentado do lado direito da mesa da esplanada do café, que tinha nariz adunco, queixo remendado e que naquela bela noite de meio-dia trazia uma camisola verde e umas calças vermelhas.
- Mas tem de admitir que essa remarcação esteve revestida por uma quantidade considerável de comicidade negra. – Retruca o que estava sentado no centro mas mais para o lado esquerdo da mesa da esplanada do café, que tinha a boca torta, uma perna falsa devido ao tiro de uma espingarda aquando da guerra civil de Santa Iria da Azóia e que naquela quente noite de meio-dia de inverno trazia, por sua vez, umas calças verdes e uma camisola vermelha.
- Não nego que tenha tido a sua certa graça, mas não foi nada por aí além! E o que mais me incomodou foi a descontextualização da conversa! – Redargue aquele sujeito com aquelas características que o escritor deste texto (se é que este conjunto de imbecilidades e barbaridades se possa chamar de texto) enunciou há dois parágrafos.
- Ah! Queira desculpar caro amigo mas não posso anuir a tal afirmação. O nível claro de comicidade passa instantaneamente a contextualização da conversa para segundo plano. – Revida aquele com aquelas características que o leitor tão bem conhece e que o nosso tão bem-fadado se livrará de expor novamente para não correr o risco de enfadar o nosso leitor.
- Agora queira vossa excelência perdoar-me mas não estou de acordo consigo neste ponto visto que um prato de tremoços sabe bem melhor que qualquer remarcação por mais revestida de comicidade que esteja! Gostará mais vossa mercê de uma bela caneca de sumo de cevada acompanhada de um pires de tremoços ou de umas quantas frases cómicas que não lhe quitam a fome? Ah pois é… - Riposta aquele que não gostava de pastéis de nata tanto como gostava de violinos e que tinha o nariz adunco.
-Fique sabendo nesse caso, que eu prefiro muito mais um bom livro com batatas cozidas regadas com um fiozinho de azeite do que um cachorro quente, ou até de uma hamburguesa. Mas diga lá agora aqui que ninguém nos ouve que não gosta sempre de ouvir um gracejozito para animar o ambiente? – Indaga aquele que era vendedor de sanitários em part-time e cuja perna lhe tinha sido tirada por uma bala.
- É certo que sim, mas as descontextualizações põem-me fora de mim, que quer que faça? Sou assim desde pequeno. Quando eu pedia a minha mãe uma faca, teria eu os meus 6 anos, e ela dizia ‘Vai brincar lá para fora que está um belo dia de neve.’ eu juro que se ela me desse a faca que eu previamente lhe pedira, logo lhe mostrava o que era um bebé morto. – Respinga o que tinha uma mulher que já tinha sido um homem e que tinha o queixo suturado.
- Ah! Viu?! Viu agora?! Fez uma descontextualização e não deu por fazê-la! Estava aí sossegadamente a falar sobre matar a sua mãe e referenciou o bebé morto. Ah pois… é tramado quando nos acontece a nós, não é? Pois… - Exclama o segundo individuo que dá pelo nome de Norberto Pereira e cuja mulher faz abdominais.
- Bolas! Retiro o meu chapéu perante si caro companheiro. Agora que a minha aversão por descontextualizações amenizou, confesso que até achei uma certa piada à tal remarcação que o bonito escritor me fez referir, mas não lhe diga que eu lhe contei isto porque ele encarregou-me de realizar um conflito consigo. – Confessa o traidor cuja cabeça rolará no chão no fim deste texto. E que era demasiadamente preguiçoso.
- Vai um prato de tremoços? – Pergunta o segundo personagem que passou a ser o preferido do autor visto que o prévio delatou o espectacular escritor deste texto que nem está assim nada de especial.
-Os tremoços fazem-me mal ao estômago. Ah, já agora, sabe o que é pior que um bebé morto num caixote do lixo? ...
E assim se passou aquela bela noite de meio-dia naquele café da esquina já aqui desta rua que desce como quem vai para o pelourinho. Naquelas duas cadeiras nunca ocupadas por ninguém em especial mas em que todo o povo se encosta para conflituar, em volta da mesa de metal da esplanada do café, cujos pratos principais são a doce ironia e a requintada absurdez de comentários.

1 comentário:

  1. tao bonito. eu pesquisei "nanadosantos o parvo" e apareceu a tua pagina.
    eu sou o irmao dele

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